GRAMÁTICA APLICADA
São raros os dias em que eu sento pra ver Jornal Hoje. Gosto do Evaristo, gosto da Sandra. Só não gosto das notícias. Acho que isso é relevante, não? Por isso que só assisto às chamadas.
Em compensação, leio o Correio todo dia, tendo o cuidado mental de pular as páginas de Política, Economia e Cotidiano. Afinal, só tem coisa ruim lá: número, gente feia e tendências indecentes.
A bola da vez é a violência no Rio e – em menor escala –
O problema é que a violência está muito perto, perto demais pra ser ignorada. Se ela estivesse lá longe, na favela, no subúrbio, na Ceilândia, apenas, talvez o jornal estaria ocupado com tendências da moda ou a última da Cicarelli. Mas, não. A cabeça decepada do moleque é classe média alta, talvez de família abastada.
Daí, véspera de Carnaval, alguns famosos, ao serem entrevistados, dizem que isso “é uma vergonha, a gente precisa fazer algo.” Alguns acham que comemorar Carnaval é uma ofensa. Até um publicitário fez um anúncio perguntando o que temos que fazer pra acabar com isso.
Essa é uma boa pergunta. Num sistema republicano como nosso, seria papel do Estado e da polícia reprimir e evitar a violência. A gente paga imposto pra isso. O que mais fazer?
Hoje, extraordinariamente, ligo a TV e assisto ao jornal. Vejo uma madame carioca com olhos marejados, usando óculos escuros pra esconder a cara de tristeza.
E AÍ, VEIO A LUZ.
Óbvio! Claro! Elementar. O barbeiro que decepou o moleque, o zarolho que errou na garota do morro, o traficante que abastece as festinhas do filho da madame – todos esses só querem o que a madame tem. Os óculos escuros de grife. O carro do ano. A casa com cerca eletrificada.
Eles querem mais. Querem uma loirinha do shopping. Querem entrar no Shopping. Querem o Nike Shox. Querem ser amigos do cara do Nike Shox. Querem ir ao Mac Donald’s. Querem ser iguais a mim, a você, que tem internet, mp3 player... mas não pra usufruírem. Querem ser como nós pra poderem esnobar os miúdos como eles.
Porque, quando encontramos um deles, fazemos a mesma coisa. Ignoramos, olhamos feio; censuramos a condição dos dentes, da roupa do camarada. Sentimos nojo, às vezes medo. Achamos absurdo virem atrapalhar nosso infinito particular de beleza e tecnologia, o universo artificial ao nosso redor.
O Nike do riquinho não o deixa com os pés no chão de que tênis de 600 reais não é real no mundo do flanelinha. Os óculos da patricinha não a deixam enxergar que a pivete ali não tem nada contra ela. O promoter da festa não liga o fato de que o 'avião' que vendeu o pó pra ele é o mesmo que vai apontar a arma na sua cara. Na verdade, os miseráveis moleques só se perguntam porque eles não podem ser iguais.
Ué, é porque nós não somos iguais. Se me perguntam quem é fulana, começo a descrição pelo emprego que ela tem, pelo carro que ela tem, pela camiseta que ela tem, pelo celular rosinha com câmera que ela tem (sem câmera, você não tem); pelo gel do tênis, pelo número da promoção do Mac Donald’s, pelo colégio onde ela estuda.
Daí, talvez eu emende um “mas ela é legal.”
Pois então. No fim, lembrei que, ao me perguntarem quem é fulana, o que deveria aparecer na resposta é o verbo ‘ser’, não o ‘ter’. Noções básicas de gramática que não são conhecidas no dia a dia. Reprova-se a liberdade, reprova-se a segurança, reprova-se a cidadania, reprova-se a vida.
E nos privamos de conhecer, compreender, talvez amar o semelhante que não é semelhante porque, segundo a mãe da Alana – aquela da bala perdida -, ‘quem mora no morro não tem sonho.’ E, sem os sonhos, vai-se a capacidade de olhar pra nós e se sentirem iguais.
Então, volto à pergunta do publicitário: o que temos que fazer pra acabar com a violência? Talvez pequenos gestos cotidianos, como dar bom dia para ricos e pobres; ser educado com advogados e jardineiros; tratar com carinho abonados e pé-rapados.
Talvez, assim, todos entendam que, por trás de vidros de carros, cercas de casas, óculos escuros, somos seres humanos que não precisam dessas coisas pra sermos seres humanos – iguais a eles.
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Quem nunca viu um filme em que o cara legal, no começo, ajuda um desafortunado; e, no meio do filme, o desafortunado, que na verdade é o bandido, trata o cara legal bem por causa da boa ação feita no início? Há ainda as fábulas em que a donzela trata com carinho a pobre velhinha da rua, que vem a ser uma bruxa – ou uma fada. Obviamente que, no desenrolar, a bruxa/fada vai ajudar de volta a donzela. É mais ou menos por aí.
Ué, achei que já tinha respondido a esta pergunta... msn: nemchama@hotmail.com